A violência obstétrica - pintada de preto

Essa semana estive muito pensativa, ao ver alguns relatos e matérias na internet, a respeito de violência obstétrica. Há (graças à Deus), uma onda de mulheres que estão lutando pelos seus direitos enquanto parturientes de escolher sim um parto natural para o seu bebê, de ser a protagonista do seu próprio parto, contra a espoliação médica, o cesarismo, a cirurgia forçada, etc. Dados em que o Brasil é o país que mais faz cesarianas no mundo são o boletim de ocorrência de muitas mulheres para a indignação de ter dado à luz de uma maneira totalmente oposta à que sempre sonhou. Sempre achei lindo e incentivei esse tipo de campanha, porque, sem dúvida alguma, é uma luta contra mais uma estrutura do patriarcado, é dar voz à um dos momentos mais sublimes de uma mulher.

Porém, eu, interessada no assunto, comecei a reparar mais atentamente no que via. Nos relatos das que almejaram conseguir seus partos humanizados: todos (repito, TODOS os relatos que li) eram em hospitais/casas de parto particulares. As mulheres: todas brancas. Quase sempre acompanhadas de doulas, que são mulheres com uma profissão linda, porém bastante cara de manter.

Os relatos eram magníficos. Um mais lindo que o outro. Todas se revoltando contra a violência obstétrica. E fiquei pensando comigo mesma, qual é a violência obstétrica que é veiculada na campanha. A das parturientes que não conseguem seu parto natural? Aos médicos que forçam uma cesária marcada? Aos partos naturais induzidos?

Sim, isso é violência obstétrica. Mas alguém já parou pra pensar na violência obstétrica da mãe negra?
Posso começar o meu relato com base em  tudo que vi, vivi e que qualquer um pode ver. Basta dar as caras numa maternidade pública.

Pra começar, o cenário muda totalmente. Esqueça a Perinatal e o Barra D'or. Aqui você tem uma Rede Cegonha, trazendo grávidas e mais grávidas a um ambiente muitas vezes, lotado. Quase todas, negras. As/os obstetras - todas/os brancas/os, porque obstetra negra/o é raridade - fazem o exame de toque na gestante, com a delicadeza de uma furadeira na parede. Sua obstetra não está lá. Afinal, ela não tem direito a obstetra própria. Tá com dilatação? Bota na sala de pré-parto, com mais 20. E assim que ela subir, vai comentar com a enfermeira plantonista que ela deve estar drogada, que deve estar grávida de bandido e que é bom deixar sofrer um pouco pra aprender. Quem mandou fazer filho?
Sobe pra sala de pré-parto. Ninguém perguntou como tá a dor. Se ela quer banheira de água quente. Se a dilatação tá ok. Ela grita desesperadamente. As enfermeiras, saturadas de tanta grávida no mesmo local pra pouco plantão, não a olham, nem sequer a percebem. Ela sofre sozinha. Estourou a bolsa? Ainda não? Abre as  pernas que a enfermeira vai romper com o bisturi pra acelerar o processo. Anestesia? Nem pensar. Não tava bom na hora de fazer? Agora aguenta.
Empurra a barriga dela pra criança sair logo! Não tá saindo. Tem mecônio. Precisa de cesária. Mas que cesária? Não tem cesária disponível. Não tem essa opção. Vai sair por aí mesmo.
Mais dor. O trabalho de parto não evolui. O bebê tá em sofrimento. Duas horas depois, liberam um centro cirúrgico. Cesariana de emergência. O bebê nasceu com insuficiência respiratória. A mãe não pôde ver o filho. Mamar? Nem pensar. Segurar no colinho? Jamais. Não precisa disso.

O filho foi pra UTI. Ou nem nasceu, morreu no parto. Ou foi parto "natural" com sorinho na veia. Ou teve fórceps. Ou teve vácuo. Ou não teve mãe pra aguentar a barra do parto público: morreu dando à luz.

Não teve doula pra amparar.

A mulher negra não tem direito a ser mãe decentemente. Seu filho é, desde o nascimento, um estorvo pra sociedade. E ela também. Foi parir pra quê?

A mídia não fala dessa violência obstétrica. Não fazem filmes nem campanha pra ela. Porque a mulher negra não é interessante. Ela não é incluída no pacote humanizado. Ela não vende.

Porque o filho da negra é o futuro namorado da sua filha branca que você vai olhar torto. O futuro caixa de banco que você vai desconfiar que tá roubando seu troco. O futuro homem do qual você vai desviar na rua, numa noite fria.
Ou a futura menina que vai passar de shortinho no ônibus e você vai xingar de favelada. A futura doméstica da sua casa. A futura cozinheira da sua escola que você vai esnobar.

Ou a futura mãe. Num futuro hospital público. Numa futura violência obstétrica. Num retorno do círculo vicioso onde  a negra sempre perde.

Na foto: mais dois sobreviventes.

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