Epilepsia e maternidade: da Rede Cegonha ao passeio no parque

Já tem um tempo que queria falar sobre isso, porque é algo que acontece com muitas mães e as pessoas simplesmente NÃO FALAM sobre isso. Esse texto revela uma coisa que poucos que me conhecem sabem, e que sempre tive muita vergonha de que soubessem. Tive grandes problemas até me aceitar com a doença - que não tem cura - e trago isso hoje para que vocês conheçam o que eu passei, e pelo que vocês não devem passar se um dia forem mães ou pais.

Ressalto, desde já, que não sou médica. Meus relatos são embasados pura e simplesmente na minha vivência e experiência, como quase todos - se não todos - os textos aqui no blog. 

Tenho episódios de desmaios frequentes desde os 16 anos. Lembro-me que desmaiava na escola praticamente todos os dias, e ninguém sabia o que eu tinha. Cansei de contar as vezes em que fui para o hospital em ambulâncias, voltando sem nenhum diagnóstico. As pessoas simplesmente não entendiam o que eu tinha, porque eu apagava do nada e o que me fazia passar tão mal. Aos 17 fiz exames endocrinológicos, conseguidos pela diretora do meu colégio na época, que estava preocupada comigo. Sem sucesso, tudo normal. Aos 18, comecei a ter convulsões violentas, o que começou a assustar as pessoas. A convulsão é algo que assusta. MUITO. As pessoas ficam abismadas com o que você está fazendo e não sabem como agir ou o que fazer. E eu, que dependia do SUS para conseguir um neurologista, acabei por esperar - deitada - um diagnóstico para minha saúde. 


Até que engravidei, aos 19 anos.
Fiz meu pré-natal num posto de saúde no Centro do Rio. Minha obstetra, me interrogando sobre possíveis doenças, me ouviu relatar meus episódios convulsivos e desmaios, mas não deu muita confiança. Continuou fazendo os exames de praxe, auscultando o bebê e seus batimentos, receitando ultrassonografias e observando o andamento da gestação.
Com mais ou menos 5 meses de gestação, fiz um quadro de infecção urinária. No mesmo dia, eu tive consulta no pré-natal e relatei à minha obstetra conhecer a dor, saber o que era e que já havia tido febre. A médica deu de ombros pelo fato de eu não ter medido a febre com um termômetro (!) e me mandou de volta pra casa. No mesmo dia, à noite, fui internada na maternidade com diagnóstico de pielonefrite.

Nessa internação, meus pais tentaram conversar à todo custo com os médicos e obstetras do hospital, dizendo que eu convulsionava e que estavam preocupados com isso interferir na gestação. Depois de muito custo, o clínico da maternidade me prescreveu carbamazepina como anticolvulsivante.

Comecei a tratar com o remédio, mas ele de fato não foi eficaz. A carbamazepina só me deixava mais grogue pra ter convulsões do mesmo jeito. Eu continuava relatando meus quadros convulsivos à obstetra, que dizia para eu não me preocupar, porque se caso eu tivesse uma convulsão em trabalho de parto, os médicos me aplicariam anticonvulsivo e ficaria tudo bem. 



Como muitas de vocês sabem, o Gael nasceu prematuro, com bolsa rota em 33 semanas. Na maternidade, era comum esquecerem a medicação anticonvulsiva, e eu cheguei a desmaiar em uma das noites. Em outro episódio dessa internação, por engano me deram um diazepam prescrito para uma menina da mesma enfermaria que tinha acabado de sofrer um aborto espontâneo e estava irrequieta. Eu apaguei durante 12h.

O descaso com as minhas crises me fez descobrir que eu tive uma gravidez de alto risco só muito tempo depois de Gael ter nascido. Descobri que a carbamazepina em muito poderia prejudicar o feto e causar má formação. Que eu deveria ter acompanhamento da doença cuidadosamente no pré-natal. Que as minhas crises epilépticas poderiam aumentar - e muito - as chances de um aborto espontâneo. Fora o risco, claro e clássico, de eu sofrer uma queda e me debater com uma barriga imensa em algum lugar perigoso que pudesse machucar a mim, ao bebê e quem sabe, fatalmente.

Mas a gestação havia passado e agora eu era mãe. E os meus medos continuavam. Meus pais morriam de medo que eu saísse com o Gael no colo e um belo dia me estabacasse no chão e deixasse ele cair. Aos 21, finalmente minha consulta no neurologista saiu, e eu fui diagnosticada, depois de exames, como epiléptica. Agora sim, poderíamos colocar em questão os meus medicamentos e os cuidados que todos deveriam ter comigo.

O que fazer em caso de uma crise convulsiva com alguém próximo
   


Mas, em grande escala, os cuidados eram piores do que ter a doença. Inevitavelmente, para o meu bem e o bem do Gael, eu tenho muito da minha independência restringida. Não posso dirigir nem andar de bicicleta sem alguém ao lado. Não posso nadar sozinha numa piscina nem ir ao mar sem companhia. Tenho que estar sempre alerta e em um local com cadeiras próximas para sentar, caso a aura* me avise de uma crise. Não posso beber em excesso - com medicação, nem sem excesso -, tenho que tomar o dobro de cuidado com luzes, semáforos, boates, locais extremamente escuros com iluminação fraca.

Mas principalmente, um passeio no parque com o Gael não é o mesmo. Nem sempre eu aguento ficar correndo com ele pelo campo de futebol. O sol forte pode me causar estafa e o cansaço leva à crises convulsivas. Não posso levá-lo ao mar sem estar com alguém nos acompanhando o tempo inteiro. Muitas das atividades que eu poderia aproveitar imensamente com o meu filho são aproveitadas só até certa parte, ou até certo tempo. É complicado.

De certa forma, é uma adaptação. Eu me adaptando ao meu filho com todo o gás dele, ele se adaptando à mim com todas as minhas limitações. Não posso dizer que não tenho vergonha de contar às pessoas que tenho a doença. Hoje, o Gael, mesmo bem pequeno, já sabe avisar meus desmaios/crises convulsivas às pessoas próximas, pedir ajuda e tentar me acordar ou me fazer recobrar a consciência. Alguns amigos próximos já sabem como lidar e abordar. 



Mas os desafios são inúmeros. A crise do SUS fez com que eu não conseguisse mais os meus remédios após um tempo (até hoje, meu quadro não foi normalizado, não consegui comprar os medicamentos e ainda tenho crises). Dificilmente as pessoas não tentam fazer coisas no seu lugar, como se você, mesmo mãe, não pudesse fazer pelo seu filho. Difícil conduzir uma relação onde você de alguma forma é limitada e o pior: as pessoas ainda não aprenderam a lidar com a epilepsia.

Comumente considerada uma possessão do demônio nos tempos mais remotos, a epilepsia ainda parece guardar muito do seu passado, apesar da medicina ter dado uma boa mudada nisso. Ela ainda é vista com preconceito, uma limitação que dá pena e faz as pessoas te virem como coitada. Consequentemente, você vira uma mãe sem capacidade de cuidar do próprio filho sozinha.

E não é bem assim que acontece, né?

Ter epilepsia não me impede de correr com o meu filho. Talvez eu possa correr menos, ou somente numa parte do dia. Mas isso não me impede de correr com ele.
Ter epilepsia não me impede de ir nas festinhas de aniversário dos amigos. Talvez eu fique pouco tempo, talvez precise ficar mais sentada e não tão perto do globo de luz, mas eu irei.
Ter epilepsia não me impede de sair, ir ao clube, passear, andar, brincar. Nem de dar esporro ou bronca.
Carinho, amor, educação, cuidado e responsabilidade independem de qualquer doença. E isso o Gael tem de sobra <3





*Aura é o termo associado às sensações que antecedem convulsões e ou crises de enxaqueca, e que permitem ao paciente o conhecimento de sua iminência .
A aura tem duração típica de uma hora e é caracterizada por várias sensações de advertência que incluem: distúrbios visuais - entre eles lampejos de luz e embaçamento da visão; má coordenação motora; rigidez, formigamento e dormências pelo corpo; dificuldades na concentração e na fala, entre outros.


Comentários

  1. Tbm tenho epilepsia. Já tratei com carbamazepina, na época minha neurologista me dizia que se eu engravidasse deveria tomar um líquido para evitar a má formação do feto. Mas dps de mto tempo descobri que tenho um outro tipo de epilepsia (ela me disse que existem 3 tipos e cada um se trata com um tipo de remédio), hoje faço tratamento com o fenobarbital (para quem sente vergonha da doença é ainda pior, já que o povo sempre faz piada que Gardenal é remédio de doido). Ele melhorou mto minha qualidade de vida, por ser o mais adequado pra mim. Tinha crises se perdesse sono, hoje isso é bem mais tranquilo. O fenobarbital traz menos efeitos colaterais para o feto. Só precisei acompanhar a dosagem no sangue. Como minhas crises era por perder sono, a fase de recém nascido era uma preocupação. Mas graças a Deus não tive nada. E minha filha começou a dormir à noite inteira com dois meses. Legal o texto, como vc disse falam mto pouco sobre isso. E foi bom saber que não sou a única a ter vergonha (embora sem motivos) da doença.

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    1. Oi, Raquel!
      Fico muito feliz que você tenha acertado no tratamento, porque realmente pra muitas pessoas é difícil encontrar a medicação correta.
      Que bom que deu tudo certo no seu pós parto! É muito bom saber quando temos alguém que passou pelas mesmas experiências, me sinto grata, de verdade.
      Obrigada pelo comentário! :*

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