Você já perdoou a sua mãe hoje?

Oi, gente.

Fiquei alguns meses sem fazer o que mais amo - escrever. Passei por uma crise existencial profunda, de simplesmente abrir esse blog aqui e não saber o que falar, como falar e o que fazer. Minhas mãos estavam improdutivas. Pensei até em desistir, confesso.

Fiquei esse tempo todo pensando em como voltaria, do que eu falaria. Vários títulos ficaram aqui em stand-by, esperando uma inspiração para sair do rascunho. Só que nesse meio tempo, aconteceu algo que marcou profundamente a minha compreensão da maternidade. Em 14 de janeiro deste ano, eu perdi a minha maior entusiasta nessa vida: a minha mãe. Perdê-la foi um divisor de águas no meu pensamento como mãe e até enquanto produtora de conteúdo da maternidade. E resolvi: nesse momento, é sobre isso que quero escrever, e falar para vocês sobre como isso me marca profundamente.

Minha intenção com esse texto não é passar uma visão romântica de mãe ou avó. Nesses meus anos de experiência com a blogosfera materna e com o meu público, já lidei com diversas mães, das narcisistas às que abandonaram suas filhas. Mas quero falar para além disso: quero dizer o quanto a maternidade é importante, e o quanto ela influencia no que seremos para os nossos filhos, mães ou pais. E que às vezes, é muito necessário fazer a psicóloga de si mesma e entender a importância disso.

Dona Margarete era uma mãe típica com uma história atípica. Para começar, ela era filha adotiva de uma mulher que já tinha três filhos biológicos. Sua mãe biológica não teve condições de criá-la, era uma dessas mulheres que sofreram com a imposição patriarcalista e o preconceito de ser mãe solo de um homem que não tava nem aí para uma cria que ele nem queria. Sozinha, ela assumiu a responsabilidade de mesmo sem querer, "oferecer" a filha para a adoção. Minha mãe aprendeu a chamar minha avó de mãe instintivamente, em um momento de perigo. Não houve aquele estímulo do "fala mamãe, fala". O conceito de adoção era algo confuso nos anos 60, principalmente para a minha avó, e acabou que a minha mãe ficou sendo a "irmã de criação" até o fim de sua vida.

Enquanto mãe, ela tentou abolir tudo o que de ruim teve em sua criação. Os cuidados domésticos da casa, pelos quais ela era responsável com apenas 10 anos, foram afastados da minha infância. Aprendi a cuidar da casa muito depois. O estímulo à escola e aos estudos, que ela nunca havia tido, foram presentes na minha infância - muito pelo fato de minha mãe ter sido educadora a vida inteira. Os castigos físicos frequentes de sua infância, ela minorou em grande quantidade (embora fosse uma grande defensora de 'uma palmada não faz mal a ninguém').  Resumo: tentou ela fazer com que eu não carregasse os traumas de infância que ela carregava.

No entanto, ela era fruto de sua criação e seu tempo. E muito do que ela incorporou à minha criação eram coisas que não faziam o menor sentido para mim, mas todo o sentido do mundo para os seus valores e suas posições. Sempre dizendo que "eu não tinha freio social", minha mãe colocou em mim a carga de seus resquícios de preconceitos e valores machistas deturpados. Reprimiu a minha sexualidade durante um bom tempo: ela sempre 'descobriu' tudo, nunca contei por livre espontânea vontade sobre o meu primeiro beijo, a minha primeira vez ou minhas experiências. Além disso, ela acreditava que uma boa mãe controla. E controla MESMO. Com 24 anos, ela ainda se preocupava com 'o que os outros iriam pensar de mim'. E colocava a vergonha que ela sentiria com alguma situação em que eu estava inserida, nas minhas costas. Além disso, não raro era ela falar frases como "quem pariu Mateus, que o embale" e "você é uma péssima mãe". E isso magoava muito, e muitas vezes.

Eu concordei muito pouco com a minha mãe sobre muitas coisas. A maternidade era uma delas. Sempre acreditei que eu tinha o direito de ser distraída, afinal, o Gael caiu sem preparo de pára-quedas no meu colo e eu já tinha uma personalidade antes dele. Não acreditava no romantismo, achava que era ok errar, a gente tenta de novo. Não acreditava em palmada. Queria ler sobre Montessori em casa, criação com apego. Amamentei em livre demanda até onde deu pra mim. Muitas vezes gostava mais de me enfiar num livro e estudar do que brincar de super-herói. Ela achava isso um absurdo.

Mas o que precisei entender, é que ela foi fruto do que ela conheceu por mãe.
Ela também sentiu culpa, quis chorar, disse que não aguentava mais ser mãe.
Ela também amaldiçoou o dia que quis ter filhos e se arrependeu em seguida.
Ela também gritou, errou. Também foi abandonada por quem deveria dividir o peso da bola com ela, também lutou e também não soube o que fazer.
Mas na época em que eu era criança, falar que isso era normal era levar uma surra da sociedade.

Sempre admirei minha mãe, por toda a sua força. Mas passei a admirá-la porque entendi que eu lutava por ela também. Meu discurso não serve só para as minhas colegas de idade, que acompanham os dramas de ser mulher no hoje, mas também e principalmente, para as que sofreram o que era ser mulher no ontem. Para a mulher que não saía no carnaval e se trancava em casa, enquanto o marido festejava na rua. Para aquela que engoliu a traição porque "homem trai". Para aquela que já era mãe solo e dava conta disso numa época em que o preconceito contra isso era muito maior. Muito mais precisava do feminismo ela, do que eu.


E ainda assim, a minha mãe, do alto dos seus 52 anos, dizia que ela ia marchar com as mulheres contra o Bolsonaro, porque ele era um retrocesso à história feminina.

Então, eu pergunto à você, cara leitora e leitor que deixei abandonada/o por tanto tempo: você já perdoou sua mãe hoje?
Já compreendeu que o que ela foi pra você, muitas vezes (com certeza, não sempre) é fruto de um tempo em que ela não era ninguém e a voz dela não valia de nada?
Já a perdoou por entender que ela se levantou muitas vezes contra você, porque alguém já se levantou muitas vezes por ela?
Que ela te criticou porque muitos a criticaram?

Longe de mim interpretar que toda mãe fez sofrer porque sofreu. Tem mãe que não presta. Porque mãe é ser humano.
Mas é interpelar por nós, mães do hoje, e dizer que nossa tarefa é aprimorar o que aprendemos e fazer do que nos reprimiu ontem, objeto de libertação para os nossos filhos. Abre mão desse rancor. E abre mão também de rezar a cartilha da tua mãe achando que tudo que ela fez foi certo. Ela também errou achando que acertava. Nosso papel é entender que estamos acertando enquanto respeitamos nossos filhos muito mais do que a geração de nossas mães nos respeitavam.

Falo hoje de todos os erros de minha mãe sem um pingo de mágoa ou revolta. Compreendo que ela errou. E acertou. E fez o errado querendo fazer o certo. E quis não ser mãe. Porque ela foi uma mãe real. Hoje, só restam saudades de tê-la ao meu lado. E o grandissíssimo aprendizado, tanto dos erros,quanto dos acertos, que ela me deu.

Afinal, ter uma mãe é ter uma inesgotável fonte de conhecimento de si mesma e do mundo. Cabe a nós descobri-la.

Mãe, obrigada por me ensinar tudo. E obrigada por deixar eu aprender o resto sozinha.



Comentários

  1. Ser mãe é uma experiência que me fez entender a minha mãe. Ser feminista também. Entender isso que você disse, de que ela é fruto da cultura em que ela foi criada me ajudou a entender e perdoar certas coisas. E a relação se transforma em outra depois disso.

    Ah,obrigada por voltar

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  2. Eu tenho uma história semelhante à da sua mãe, fui adotada por minha mãe que já tinha 3 filhos biológicos pq minha mãe não podia me criar (TB vítima do patriarcado), foi difícil aceitar, digerir e entender toda a situação, entender minhas mães e suas razões e sempre bati no peito ao dizer para ferir que faria diferente com meus filhos, até ter filhos. Eu de fato faço diferente, quebrei o ciclo do bater para educar, do ter que servir ao homem, da vergonha e insegurança em demonstrar amor e afeto e meus filhos por serem extremamente carinhosos quebraram esse ciclo com minha mãe adotiv eu perdoei as mágoas, entendo suas razões e motivos e as amo incondicionalmente. Costumo dizer que aprendi a ser filha quando me tornei mãe e pude ser a mãe que sou, por ter sido filha. Parabéns pelo lindo texto.

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