Desculpe o transtorno, precisamos falar de Marcela Temer.

Confesso que um título nunca resumiu tanto o que eu sentia. Nunca senti que precisava tanto falar sobre algo, e que esse algo fosse tão significativo pra mim, e acredito eu, para a maioria das mulheres brasileiras nesse momento. 

Após o golpe que depôs a nossa até então primeira presidenta eleita democraticamente no Brasil, Dilma Roussef, tomou posse seu vice-presidente golpista, Michel Temer. Os movimentos de esquerda, incluindo o feminismo, se viram tomados pelo retrocesso político que se instaurou no país nesse momento, perfeitamente maestrado pelo então presidente da câmara dos deputados, Eduardo Cunha, e o presidente do senado, Renan Calheiros, ambos filiados ao PMDB. Mais uma vez, os movimentos de esquerda - e muita gente que não é de esquerda, mas que vivencia de perto os problemas sociais - observou que o conservadorismo, o fundamentalismo religioso e o machismo tinham voltado à imperar no Planalto. Tomamos um golpe de Estado político e social. Um ministério novo assume, mais uma vez, sem nenhuma mulher. 

Dentro do cenário político controverso e explosivo, de onde sai uma presidenta (solteira), surge uma primeira-dama. 43 anos mais nova que o marido, o atual presidente Michel Temer, Marcela Temer é o padrão de mulher brasileira que o governo precisava para expor ao povo. Branca, de beleza padrão, jovial e com aparência frágil e dócil... que mulher não queria ser a Marcela? 

 Bela, recatada e "do lar", ela seria o exemplo de mulher brasileira apresentada pela primeira vez à sociedade pela revista Veja. Educada, recatada e preocupada com a beleza, a matéria tendenciosa procurava mostrar Marcela como uma "mulher de sorte", esposa de um homem que ainda a amava ardentemente e procurava reacender a chama da paixão, mesmo depois de 13 anos de casamento. Bacharel em direito, entretanto, a única profissão que exerceu foi participar de concursos de miss. Pouco vista ao lado do marido ("recatada", claro), era "educadíssima", e seus dias consistiam em buscar e levar Michelzinho (filho do casal) na escola, cuidar da casa e do lar. 

"“Marcela sempre chamou atenção pela beleza, mas sempre foi recatada”, diz sua irmã mais nova, Fernanda Tedeschi. “Ela gosta de vestidos até os joelhos e cores claras”, conta a estilista Martha Medeiros.""

Marcela Temer no desfile de 7 de setembro, em 2016

A matéria revoltou a maior parte das mulheres. A revista Veja, campeã de tendenciosidade e machismo, esqueceu de mencionar que Marcela Temer era riquíssima pela corrupção de seu cônjuge, e exibida por um marido machista e que a valorizava como um troféu - a pura e casta donzela, que namorou pela primeira vez aos 18 anos e se casou aos 20 com um homem infinitamente mais velho. Várias feministas - e não feministas - ironizaram o título da matéria, lançando fotos com suas vidas reais, sem o glamour da vida perfeita que a revista pinta. 

Recentemente, Marcela foi convidada por "Mi" a ser embaixadora do programa "Criança Feliz", criado pelo governo Temer. 
Com um visual minuciosamente pensado para a ocasião, a primeira-dama foi ao discurso de lançamento do programa com penteado e roupas conservadores e que lembravam muito mais uma professora primária do que a embaixadora de um projeto. Com um tom maternal, doce e didático, Marcela Temer fez um discurso baseado no "instinto materno" e na "voluntariedade", dizendo serem estes seus pilares para encaminhar um projeto social de apoio às crianças atendidas pelo Bolsa Família na primeira infância. 

Marcela Temer lança o projeto "Criança Feliz", em tom maternal e gracioso.

Tristemente, o governo tenta passar uma mensagem machista e conservadora sobre os programas sociais e as políticas públicas voltadas para a infância, tão necessárias para a sociedade de classes no Brasil. 

Marcela foi convidada pelo marido para ser a "mãe dos pobres". Ignorando a importância da assistência social nas políticas públicas do país, o cuidado com as crianças foi novamente tratado como "assunto de mulher". O visual de Marcela, que faria inveja à professora Helena, o penteado infantil e seu tom de voz reafirmaram que a assistência social se tornou uma relação entre mãe e filho numa escala maior. Apenas.

Além de a primeira-dama se tornar um espelho do que toda mulher brasileira deveria se tornar, ela reafirma o que a todo o tempo o governo Temer precisa que nós, mulheres, acreditemos. 
Que ser feliz é ser mãe, casada, dona de casa e bonita - se você não for negra ou gorda, claro. 
Que devemos estar em casa cuidando de nossos filhos enquanto os pais trabalham, porque o dever de educar as crianças é sempre das mulheres.
Que nossa sorte na vida se resume a ter um marido (de preferência, rico) romântico.
Que podemos estudar sim, mas para que nosso diploma se torne um adorno para que nossos maridos nos exibam para os amigos.
Que servimos para acolher, cuidar, acalentar, porque somos frágeis e dóceis.
Que não haverá professores homens, porque o papel de ensinar e lecionar as crianças, é da mulher, afinal, ser professora das séries iniciais é apenas uma extensão da maternidade.
Que é perfeitamente aceitável a cultura da pedofilia e de se casar com um homem extremamente mais velho - mas se casar com um homem extremamente mais novo é abominável.

Que somos troféus. Que a beleza de nossas vidas consiste em sermos o objeto de desejo de nossos maridos, e que eles sejam homens de sorte. 

E que invariavelmente, os anos dedicados nas faculdades de Serviço Social são completamente dispensáveis para pensar e planejar políticas públicas assistenciais - afinal, basta você ser mulher e mãe, que seu "instinto" dará conta de tudo.

Estamos ameaçadas por um governo que não admite mulheres independentes. A mãe solo, a mãe preta, a doméstica, a mulher que não quer ter filhos, a gorda, a pobre, a que sustenta a casa inteira, a que tem tripla jornada. A que não quer casar, a lésbica, a bissexual, a mulher trans. A mulher de verdade. 

 O governo Temer é um governo que admite muitas Marcelas, mas nenhuma Dilma.
Nenhuma Frida, nenhuma Carolina, nenhuma Dandara, nenhuma MC Carol.

Precisamos falar sobre Marcela, porque ela é usada 24 horas por dia para performar tudo o que a mulher brasileira precisa ser. Precisamos falar sobre o quanto Marcela é a propaganda de um governo misógino e corrupto, que usa suas mulheres como material reciclável - se reciclam entre testas de ferro, adornos caros e objetos sexuais. Precisamos falar sobre o quanto Marcela é manipulada por Temer, pela mídia, pela direita para ser a mulher padrão.

E precisamos falar sobre a mulher ter direito de ser gente no Brasil.

Nos querem primeiras-damas, mas nunca presidentas.

Haverá sempre o Fora Temer.
Mas nunca seremos Marcelas.



Comentários

  1. Vc deve ser uma pessoa amargurada, mal amada e de feiura padrão

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  2. Ótima reflexão! Adorei.
    Sempre haverá um fora Temer. Mas nunca seremos Marcelas! 👏

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