Mãe negra vive.


Comemoro todos os dias, cada estatística sobrevivida. Menos uma morta nas carnificinas do aborto; menos uma porrada de marido no fim do dia; menos um estupro. Menos uma bala perdida que encontra o meu filho, por um motivo qualquer - ou motivo nenhum.
Menos um dia sendo assediada pelo chefe, ou humilhada pela patroa.
Menos um dia na prostituição, nos serviços domésticos, como se eu fosse escrava de quem me paga.

Mas hoje é o dia em que todo mundo lembra dessa comemoração; muitas vezes, não com a mesma efusividade que eu. Muitas vezes desmerecendo as minhas batalhas. Muitas vezes fetichizando minha luta como se ela fosse um estandarte de ouro pra carregar.

Hoje é 20 de novembro. É feriado por Zumbi. Não era mulher, nem negra, nem mãe. Mas esse dia é mais meu, do que dele. Porque é do meu ventre que sai o alvo da PM quando sobe a favela. Sou eu quem crio um, dois, três, quatro - sozinha, abandonada pelo pai, muitas vezes. É sobre o meu corpo que o gringo acha que tem direito. É o meu corpo que é vendido como objeto, como se eu fosse só a "mulata", cada vez menos mulher. 

Hoje, dia da consciência negra. Dia de lembrar de todas as vezes em que o meu filho foi olhado torto no parquinho porque o cabelo dele era crespo, e eu senti - mais do que a dor dele, a minha. Dia de lembrar da violência obstétrica no hospital do SUS. Dia de lembrar que todo dia é um jogo: eu e a universidade, pra ver se eu desisto primeiro que ela. E não desisto. Todos os dias.
 
Hoje eu marco na minha agenda a quantidade de homens brancos que me rejeitou. A quantidade de homens negros que não me quis porque era "chegado numa loira". A quantidade de homens que me cantou enquanto eu amamentava. A quantidade de olhares de reprovação quando me viram grávida - mas afinal, já era esperado, visto que eu negra logo engravidaria. A quantidade de lágrimas que derramei, por ser rejeitada por uma família que não me considerava digna de ser namorada do primogênito deles por ser exatamente o que eu sou - negra e mãe. O quanto me indignou ser considerada coitada ou digna de caridade por ser uma mãe negra, nova e pobre.

Pra alguns é feriado, para outros, um domingo qualquer.
Para mim, mais 24 horas.
Mais 24 horas dentro da universidade.
Mais 24 horas sem perder o filho na UPA sem pediatria.
Mais 24 horas sem prostituição.
Mais 24 horas sem violência doméstica.
Mais 24 horas de vida. Ou sobrevida.
Mais 24 horas de gente me rejeitando nos locais porque meu filho incomoda.
Mais 24 horas de saudação aos Orixás, à Orunmilá, Xangô, Oxum e Iansã por estar viva, mesmo com a intolerância religiosa me querendo morta.
Mais 24 horas sem ser arrastada por um carro da PM.
Mais 24 horas sem morrer na mão da UPP. 
Mais 24 horas em que não há outra chacina da Candelária, onde mais mães pretas não chorem juntas pelos filhos perdidos nas ruas, mortos pela bala de uma polícia racista. 

Feliz 20 de novembro. Feliz dia da consciência da mãe negra.


 

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