Maternidade na adolescência: uma visão feminista


Na semana da consciência negra deste ano, fui chamada para palestrar num colégio estadual sobre maternidade negra.
Foi algo que mexeu muito comigo, de início. Era um tema difícil e necessário de se tratar com alunos, em sua maioria negros, pobres e que precisavam ouvir sobre.
Lembro que uma das primeiras perguntas que fiz, ao começar meu diálogo, foi "levante a mão quem conhece alguma menina menor de 20 anos que esteja grávida ou já é mãe?". Quase todos levantaram suas mãos.

E aí eu notei o quanto eu precisava falar sobre isso.


Não há como negar que a gravidez na adolescência é um fenômeno social que acometeu o final do século XX e o início do século XXI. Cada vez mais, vemos mais meninas engravidando dos 13 aos 18 anos. Eu mesma engravidei aos 19, que embora não se encaixe, para muitas pessoas, na categoria "adolescente", se encaixa na categoria "nova demais para ser mãe" (na visão dos outros, é claro).



E como se explica esse fenômeno? Os mais conservadores dirão que isso "não existia no tempo deles", que a televisão e a mídia é que começaram a colocar isso na cabeça dos jovens. Alguns - a grande maioria - argumentam que a gravidez na adolescência é fruto da grande liberdade sexual de hoje em dia. Muitos dirão que os métodos contraceptivos estão aí pra quem quiser usar, é só querer, e que só engravida quem quer.

Mas a realidade é: nenhum destes argumentos responde essa questão em sua totalidade - e complexidade.

A maternidade na adolescência, o que é bem mais do que uma simples gravidez, é um evento que é, antes de mais nada, um evento social. Sim, ele é um fenômeno fortemente influenciado por fatores sociais e que o permeiam por todos os lados. É assim que se deve encará-lo. Como um fenômeno social, é possível elencar alguns fatores que expliquem porque ele acontece, ou no mínimo, elucidem sobre ele, e sobre como a sociedade ajuda - ou não - ele a se manter.

1. Fatores socioeconômicos e étnico-raciais 


É a boa e velha máxima que nunca sai dessa moda: a maternidade na adolescência atinge muito mais as meninas pobres e negras do que as de classe A ou B brancas. Ter pouca escolaridade também faz com que as estatísticas de maternidade na adolescência aumentem. O acesso a informação, à saúde de qualidade e educação sexual correta aumentam as chances de existir uma mãe adolescente.



2. A figura da mulher pobre: um exemplo histórico-cultural de procriação

Um fator complicado, entretanto, essencial para entendermos a maternidade na adolescência na atualidade é olhar para trás. Ainda utilizando o fator socioeconômico, em que mulheres negras e pobres engravidam com mais facilidade, vamos rememorar sobre o histórico das mulheres negras: desde a escravidão, mulheres negras são utilizadas como máquinas para procriar mais mão de obra escrava. Acabada a escravidão, a sociedade ainda assim precisava de mão de obra para os trabalhos braçais e domésticos (antigo trabalho escravo), e assim, a mulher negra foi sendo tida como uma mulher exclusiva para a procriação.

Quem estuda só um pouquinho de história entende a complexidade do conceito de exemplo, onde até mesmo uma mentira, dita mil vezes, torna-se verdade. Trazendo isso para a nossa realidade, é como se fosse uma reação em cadeia: a filha vê a mãe que engravidou nova e teve vários filhos e conseguiu sobreviver e trabalhar e tá aí. A vizinha do lado tá grávida, a do outro lado já é mãe do segundo filho. A amiga do colégio convida pro chá de bebê. A prima vai ter gêmeos aos 17. Dificilmente, essa mesma menina vai achar anormal engravidar na adolescência. 


3. Os métodos contraceptivos "estão aí pra quem quiser usar"... Será?

Tem camisinha masculina, feminina, pílula anticoncepcional, pílula do dia-seguinte, diafragma, DIU de cobre, DIU Mirena... Só engravida quem quer!
Será mesmo? Claro que existe hoje uma gama inteira de métodos contraceptivos que ajudam e muito no planejamento familiar, mas existe muito mais por baixo desse tapete. Primeiro, porque a política de incentivo ao uso dos anticoncepcionais, e não só políticas de saúde, mas políticas de saúde PÚBLICA e SOCIOCULTURAIS de incentivo ao uso de anticoncepcionais ainda é bem falha. Tão falha que muito homem acha que tem o direito de tirar a camisinha no meio da relação sexual, se negar a usá-la ou  negar a mulher o direito de controlar sua fertilidade. As políticas de incentivo ainda são muito rasas, pois elas não entram na cultura do brasileiro, uma cultura machista onde o homem tem a chance de utilizar o método mais simples e indolor - a camisinha - e ainda se sente no direito de dispensá-la como se a decisão só coubesse a ele, o velho papo de "chupar bala com o papel" e o "eu gozo fora".

Para além disso, os métodos oferecidos pelo mercado para a contracepção feminina não são um conto de fadas. A pílula anticoncepcional, apesar de seus avanços desde a sua criação na década de 60, ainda maltratam muitas mulheres com o excesso de hormônios, causando efeitos colaterais muitas vezes devastadores, como aumento de peso, desregulação da glândua tireoide, aumento de chances de embolia pulmonar e trombose, falta de libido, além dos efeitos psicológicos, como depressão, ansiedade e síndrome do pânico.

E não para por aí. Se a mulher quiser fugir da pílula anticoncepcional, o resto dos métodos não são tão acessíveis como parecem. Alguns são praticamente desconhecidos e pouquíssimo utilizados por falta de informação e divulgação, como o anel vaginal, o implante, o adesivo e o diafragma. O DIU, o segundo mais conhecido método e que oferece uma opção não-hormonal - o DIU de cobre - é bem eficiente, mas muitas mulheres encontram barreiras para colocá-lo perante o SUS. O método é extremamente doloroso na maioria dos casos, e muitos critérios devem ser preenchidos.

Falando em critérios, a laqueadura ou a ligadura de trompas, um método definitivo de contracepção, é ainda encarado por um viés machista. A mulher nem sempre tem o direito de escolher: a ligadura de trompas, no SUS, só é permitida após os 25 anos e mesmo assim, se a mulher já tiver dois filhos ou mais. Ou seja: poder de escolha da mulher acaba não existindo.

Acho que, por esse ponto de vista, já dá para parar de falar que só engravida quem quer.


4. A criminalização do aborto e o aborto clandestino


Uma adolescente de 15 anos engravida. Ela é recriminada pela sociedade, não tem ajuda do pai da criança e nem condições financeiras de criar o bebê. Recorre ao aborto.
O aborto, por mais que não seja uma opção para muitas mulheres - por motivos religiosos, morais ou os mais diversos, os quais respeito -, é uma opção social para a maioria delas. Embora seja um ponto nevrálgico no debate político e ainda no debate feminista, o aborto existe, sempre existiu e continuará existindo.
Voltando aos nossos fatores socioeconômicos e étnico-raciais, se essa adolescente grávida de 15 anos está encaixada numa família de classe média e quiser interromper a gravidez, ela será assistida em uma clínica clandestina de luxo, abortará de forma segura e terá a assistência pós-procedimento necessária.
Se, entretanto, essa menina estiver encaixada na favela, numa família onde a mãe - solo, na maioria das vezes - ganha um salário mínimo, ela recorrerá ao aborto clandestino da pior maneira. Se não se utilizar de métodos como a agulha de tricô e o chá de maconha, provavelmente entrará em clínicas clandestinas de péssima qualidade e de condições sanitárias muito abaixo do desejável. E o que acontecerá com ela, acontece com muitas mulheres, todos os dias: ela, muito provavelmente, irá morrer. A maternidade na adolescência ocorre, muitas vezes, porque essa adolescente não teve o direito de interromper a gravidez e não teve nenhum respaldo do governo para isso. E ela ainda é apontada e recriminada na rua porque continuou grávida. Contraditório, não? Bem-vindo ao quinto fator...

5. A liberdade sexual mal difundida: a armadilha que serve ao homem, mas não a mulher

Demorou um pouco para as mulheres perceberem que a liberdade sexual moderna não era tão boa assim para elas. O mito da liberdade sexual, de que a mulher pode escolher com quantos parceiros transa e tudo bem, os relacionamentos abertos e o recente debate sobre o "amor livre", na verdade, ainda tem um fundo muito sexista. A mulher, quando toma consciência de sua liberdade sexual e começa a exercê-la, vê em pouco tempo que na verdade, não é uma liberdade: é uma armadilha onde o homem procurou uma forma mais inteligente de submeter a mulher ao seu jugo sexual. Não raro, as mulheres ainda são objetificadas, hiperssexualizadas e julgadas como fáceis e "piranhas" porque resolveram exercer sua sexualidade como quiseram. Sair dessa bolha é uma luta que travamos todos os dias, mas AINDA é uma luta.
E isso tem muito a ver com a maternidade na adolescência. A mulher, certa de que já se colocou no seu direito de escolher o seu parceiro e quando e quanto quer fazer sexo, se vê privada a um parceiro que se recusa a usar preservativo (afinal, isso também é uma "amarra da sociedade"), que a objetifica e que, se acontece uma gravidez não planejada, ele é o primeiro a fugir.
E a mulher, em plena liberdade sexual, se vê tolhida de outra a liberdade: a da própria vida.


6. A mulher e sua falta de direito sobre a própria vida

Fui uma mãe universitária. E como mãe universitária, eu sei o que é o sistema rejeitar você enquanto você é mãe e quer fazer qualquer outra coisa.
É na maternidade que a mulher descobre que o que o feminismo conseguiu até hoje, é, na verdade, muito pouco. Nesse fator, eu posso elencar vários outros subfatores que impedem a mãe de ter uma vida que a permita inclusive usufruir de sua maternidade de uma maneira mais bacana para ela e para o seu filho.
O abandono paterno e aquela velha história de quem "homem é assim mesmo" e "o filho é da mãe", que podem ser coroados com a célebre "quem pariu Mateus que o embale" fazem vista grossa aos homens que se eximem de suas responsabilidades e colocam essa carga toda e completamente sobre a mulher;

A dificuldade de uma mulher que é mãe continuar os seus estudos, por falta de creches escolares e universitárias e de estratégias pedagógicas e estruturais que facilitem a escolarização de mães adolescentes e/ou em idade estudantil;
A barreira de acesso ao mercado de trabalho que rejeita as mulheres, a partir do momento em que elas podem engravidar e com isso, diminuir sua produção. Afinal, que mulher nunca ouviu numa entrevista de emprego "e se seu filho ficar doente, você vai deixá-lo com quem?";


O preconceito acerca de uma mulher que não teve o controle de sua natalidade de acordo com o esperado pela sociedade e é discriminada e recebe olhares moralistas porque "deu cedo demais";
O SUS e suas maternidades muitas vezes despreparadas, que submetem as mães adolescentes à maior parte dos casos de violência obstétrica e de maus tratos durante o parto;
A falta de expectativa de melhoria social, falta de investimento público nessa mãe adolescente e todos os fatores anteriores fazem com que, muito provavelmente, ela seja mãe novamente, sem planejamento.


Todos esses fatores na verdade, só nos mostram que a mãe adolescente é tão vítima do machismo quanto todas nós. Que o preconceito e a discriminação que elas sofrem nem sempre é fruto puro e simples da "irresponsabilidade" (quase sempre da mulher), mas que sim, isso está muito além disso.

Falar de maternidade na adolescência também é falar de feminismo.
Isso também é assunto nosso.
Isso também precisa ser discutido.

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