O positivo que tinha que ser negativo

Chorei ininterruptamente durante dois dias. Eu estava abatida, chorosa e com uma insistente dor nas costas. Eu não sabia o que sentir: se era raiva da minha irresponsabilidade, medo do que ia acontecer, angústia, vontade de fugir, alegria, desespero. Era tudo isso junto. Eu não almocei no segundo dia. Nem fome (sou uma das pessoas mais famintas que eu conheço, veja bem) eu conseguia ter.
Ao chegar mais cedo em casa no dia seguinte, minha mãe me pegou em plena crise de choro. "Fudeu", pensei comigo mesma. Minha mãe não conseguia me ver chorando, me conhecia mais que eu mesma e não desistia de descobrir uma coisa, até descobrir. O interrogatório foi foda... E deu certo. Com a promessa de não apanhar (nem sofrer represálias), ela arrancou de mim o que queria.
Ela não gritou. Não me bateu, nem me pegou pelo braço. Não me sacudiu, não me esbofeteou. Só olhou pra mim e falou "você precisa tirar isso". Na hora, eu concordei.
Lembro que o meu maior medo não era criar uma criança. Não era perder balada, passar fome, engordar, mudar minha vida. Era ela falar a frase que eu mais temia ouvir: "você é uma decepção pra mim".
E foi exatamente o que ela falou. Nossa, como essa porra dói. Parecia que eu tinha levado um ferro em brasa nas costas, só que eu não sentia a dor física, só a marca, a vergonha. O meu amor por ela, a minha vontade de ser um orgulho, era maior do que qualquer convicção que eu tinha.
Eu era a filha única e planejada dela, do casamento dos sonhos que ela planejou. Fui uma criança que deu orgulho, principalmente pelas minhas sempre excelentes notas. O sonho dela era que eu me formasse na faculdade, algo que ela nunca conseguiu concretizar. Que eu vencesse na vida e fosse alguém, o que ela não era. E quando eu entrei na adolescência, eu tinha feito muita merda. Mas tudo tinha mudado quando eu fui aprovada na Uerj. Curso de História, quinto lugar, faculdade pública. Ela sentia orgulho de mim. Contava de mim pras amigas do trabalho. Eu tinha lutado tanto pra ser algo pra ela... E ouvir aquilo foi a pior da pior das dores.
Aborto, pra mim, sempre foi algo perfeitamente plausível, que eu apoiava e era a favor de ser legalizado, porque as mulheres deveriam ter direito ao próprio corpo e etc., todo aquele discurso tipicamente feminista que eu tinha, pros outros. Pra mim, era algo inaceitável. Eu não conseguia me imaginar matando um ser que vivia dentro de mim. Era contra a minha natureza. Mas eu amava tanto ela, eu queria tanto que ela me perdoasse, e que eu voltasse a ser um orgulho, que eu caguei pra minha natureza. Queria que ela me aceitasse.
O pai concordou. Pra ele, realmente era a melhor decisão. Ninguém queria ter um filho agora. Se passou duas semanas, e parecia que as coisas se encaminhariam para um aborto bem sucedido, quando à noite, a dor insistente nas costas se reverteu em dor insuportável. Eu não conseguia andar, nem caminhar, nem deitar direito. O caminho foi a UPA, quando eu descobri uma pielonefrite (infecção urinária nos rins). Voltei pra casa e minha mãe teve que esquecer o aborto, pelo menos por uns dias.
A mãe dele ligou, e deu uma merda federal. Duas famílias estressadas e nervosas, informações desnecessárias jogadas no ventilador e discordância de opiniões - minha ex-sogra não era lá muito a favor do meu aborto - fizeram o clima ficar pior de todos os jeitos.
Minha infecção não cedia. Meu estômago não resistia aos medicamentos. No segundo dia, voltei à UPA. Não tinha mais jeito: a infecção já tinha tomado os dois rins. Eu precisava ser internada.

Comentários

  1. Seu guia espiritual já tava t preparando pra maior alegria da sua vida ! oq tinha q ser, seria... Parabéns pela garra e amor !

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