Terceirização do cuidado: o que a babá tem a ver com racismo e maternidade compulsória

Observe essa foto. Ela te choca, provavelmente?  Achei ela no Pinterest. Ela é de 1899, segundo eu observei, e retrata uma brincadeira costumeira da época. A babá (ou provavelmente, ainda era chamada de ama) está de quatro, enquanto a criança está inocentemente em cima dela. Talvez não tão inocente.

Provavelmente, essa foto te choca pelo mesmo motivo que eu: ela expõe claramente a situação dos negros escravizados no Brasil, e nos anos seguidos. Você consegue ver nessa foto um racismo claro, não é? Afinal, a discriminação racial foi responsável pelo sistema escravista que perdurou por mais de 300 anos no nosso país e em muitos países do mundo. 

Entretanto, esses valores, que tanto chocam hoje em dia quando retratados em fotos como essa, não se perderam completamente. Talvez readaptada e maquiada de uma maneira melhor, essa é uma situação que perdura até hoje.



E quem não se lembra de Corina, Uma Babá Perfeita?
O filme estrelado por Whoopi Goldberg em 1994 conquistou os corações da gente ao ver a babá que discutia jazz e literatura páreo a páreo com o pai da menina e que acabou por fisgar o coração não só da criança, mas também de seu pai? 



Essa é uma babá em Higienópolis, região nobre de São Paulo, num local chamado "Parque das Babás". Retirei essa foto de uma matéria no site da BBC Brasil, a qual se intitula "Qual é o problema do uniforme branco? Ganho mais que muita gente no escritório."

Você percebeu alguma semelhança ou similaridade entre as três fotos?

Parabéns, você achou a primeira problemática da profissão de babá: o racismo.

Posso listar aqui um milhão de fotos de artistas famosas com suas crias em passeios, festas e afins, acompanhados pelas respectivas babás. Em 90% delas, você vai notar que pelo menos uma (se houver duas ou mais) é negra. Isso é coincidência, ou existe algo que justifique esse fato?

Sim, existe. Chegamos ao primeiro problema de ter uma babá: a maioria das que está nas agências e trabalha no ramo vai ser uma mulher negra. Esse recorte existe porque, historicamente, as negras escravizadas eram responsáveis por amamentar os filhos e filhas das senhoras e posteriormente, cuidá-las (amas de leite e amas secas, respectivamente). Esse costume, que perdura até hoje, faz com que as mulheres negras sejam a maior parte da classe das domésticas e babás (apenas 6,1% das mulheres brancas exercem a profissão, no Brasil). Você pode observar isso com uma simples pesquisa no Google:



Mas qual afinal seria o real problema de ter babás, inclusive negras?

Porque a existência da profissão da babá denuncia, no mínimo, dois fatores:

FATOR A: A MATERNIDADE COMPULSÓRIA

A maternidade compulsória é um fenômeno que se caracteriza pela imposição que o patriarcado faz de que todas as mulheres "nasceram para ser mães". Quem nunca ouviu dizer que uma mulher sem filhos é uma mulher incompleta ou frustrada? A maternidade é um evento socialmente obrigatório na vida de qualquer mulher. Acontece que a maternidade compulsória causa outro fenômeno muito pouco conhecido, mas intensamente presente na vida cotidiana feminina: a romantização da maternidade. A romantização faz com que as mulheres pensem que ser mãe é "mágico" e ilustram a "doação da vida da mãe em prol do filho" como algo nobre e digno de elogios. Ser uma boa mãe é viver para as crias, e essa propaganda do amor acima de tudo, do instinto natural e da felicidade pela maternidade são mecanismos utilizados pelo patriarcado para que a mulher procrie cada vez mais e aceite a sua condição de lugar na sociedade: dentro de casa cuidando dos filhos. Iludidas pela romantização, as mulheres acabam sendo mães na ilusão de viver uma magia que não existe. Por essa causa, não são poucas as mulheres que acabam sendo diagnosticadas com depressão pós-parto e se frustram com a maternidade. Por isso, as que tem poder aquisitivo para tanto pagam pelo segundo fator:

FATOR B: A TERCEIRIZAÇÃO DO CUIDADO

A terceirização do cuidado acontece por dois motivos: 1) Pelo caso citado acima, de mulheres que se iludiram com a romantização da maternidade, ou 2) Pela sobrecarga do cuidado da criança em cima da mãe. Nesse caso, a mulher quis sim ser mãe e gosta da responsabilidade sobre a cria, mas não consegue aguentar a barra do cansaço que naturalmente, a maternidade traz. Sem ajuda do pai e/ou dos familiares, ela procura alguém que supra essa necessidade profissionalmente: a babá.

O grande problema da babá é que na verdade, ela não deveria existir. Primeiro, porque é uma profissão inferiorizada e sem plano de carreira (você já viu uma babá ser promovida a babá trainee ou sênior?), logo, uma mulher que é babá, se não se especializar ou mudar de carreira, nunca alçará uma posição maior no mercado de trabalho - por isso, ela é relegada as mulheres negras, nordestinas ou latinas (no caso dos EUA). Segundo, porque a babá faz o que a mãe, o pai e sua família deveriam fazer: cuidar da criança que se responsabilizaram em gerar.
A babá, geralmente, também tem filhos. E quem cuida dos filhos dela? Geralmente, as creches públicas ou populares, uma familiar ou algum conhecido que também é pago para cuidar de uma responsabilidade que é dela e de quem compartilha com ela a criação da criança. A existência da babá cria um círculo vicioso em que as mães não tem a oportunidade - sim, oportunidade - de criar e cuidar dos próprios filhos. E portanto, o capitalismo faz o que ele faz de melhor para dividir as classes e aumentar as diferenças sociais: terceiriza.


A existência das babás - e das domésticas também - tem que ser não só problematizada, mas abolida. Elas também tem direito a curtir a maternidade nos momentos bons e ruins, e as mulheres que as contratam tem que experimentar a maternidade como ela realmente é, e não só nos momentos bons. Ser mãe não é romântico; nunca foi. E está na hora das mulheres começarem a se conscientizar desse fato.

Comentários

  1. Muito bom. Opiniões como essas vindas de uma mulher que é mãe traz uma carga mais real aos argumentos.

    Parabéns.

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  2. Oi, Karoline. Conheci o seu blog hoje e estou devorando. Mas uma coisa me incomoda nesse post. Me ajude a pensar junto. Quais são as alternativas à babá, quando os pais querem e/ou precisam ter um trabalho (ou estudo) fora de casa? 1) A mãe não trabalhar fora, não estudar, pra cuidar do bebê/criança... Sei que não é isso que vc defende, ao retorno da mãe ao lar, então nem vamos nos estender por aí. 2) O pai não trabalhar fora, nem estudar, pra ficar com a cria... Mesmo problema da mãe, não dá! Fora os pais que caem fora, sabemos disso. 3) Os dois se dividirem, cada qual tralahando meio período... Sonho lindo, mas a gente não consegue bancar essas escolhas se o mundo não faz. Quem contrata pro meio período? Se até pra 60 horas por semana sem ganhar hora extra já tá difícil. Pois é. 4) Rede de apoio... Nem todo mundo tem, por mil motivos, vc sabe. 5) Cheche... Mas as cuidadoras ganham tão pouco ou menos do que as babás, por vezes com um stress gigante d cuidar de um monte, tb não tem plano de carreira, tb são negras e estão ferradas... e as mães tem menos controle ainda sobre as condições de trablaho e salários delas, e adianta dizer que uma mãe perguntando quanto as cuidadoras ganham vai abalar muito o dono da creche ou o governo que provê aquele serviço. 6) Creches compartilhadas, parentais, comunitárias, só dos pais/ma~es... lindo lindo, mas nesse mundo cão nem sempe rola tempo (se eu tenho que sair pra trabalhar às 6 da matina e chego em casa às 6 da noite, como vou fazer o rodízio?). Então o que quero dizer é que o problema é sério, real, importante... mas a resposta não popde ser simplista. Ajuda a pensar uotras soluções, porque simplesmente extinguir a profisão de babá não rola.

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    Respostas
    1. Olá! Fico muito feliz que esteja lendo o blog!
      Seu comentário foi muito feliz, e concordo em gênero, número e grau! Apesar de parecer, o texto não quis dar uma solução, mas sim convidar à reflexão sobre o assunto e acerca do cuidado e suas terceirizações, inclusive da creche (onde a maioria das cuidadoras e auxiliares, que ganham menos, são negras)... Que esse debate possa fluir mais ainda!
      Espero que esteja curtindo os textos! Grande beijo ;*

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